quarta-feira, 30 de março de 2011

VEJA ESSA INDICAÇÃO DE LIVRO


Frayze-Pereira, João Augusto. Arte, dor: Inquietudes entre estética e psicanálise. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005, 404 p.


Por Cintia Buschinelli

A Psicanálise de mãos dadas com a Arte


Certa vez, Adélia Prado,1 diante da pergunta sobre quais livros elegeria como os melhores, responde: aqueles que ainda não li e estão na estante a me esperar.2 Basta um olhar de relance para o livro Arte, dor: Inquietudes entre estética e psicanálise para reconhecer no atraente volume cuja espessura de suas 404 páginas salta aos nossos olhos que este poderia, sem contestação, assumir a categoria proposta pela poetisa, qual seja, dos melhores livros à espera do momento ideal de leitura. Sem reparo algum à observação da poetisa, afinal, reconhecemos como nossa a experiência por ela descrita, gostaria de, nesta breve resenha, mostrar ao leitor por que o livro de João A. Frayze-Pereira não está destinado à posição expectante nas bibliotecas de cada um de nós, mas para o lugar destinado aos livros de consultas nas cabeceiras de nossos divãs. Sabemos que psicanálise e arte não têm por hábito se estranhar. Sabemos também que muito já se pensou sobre essa relação, por vezes tão estreita a ponto de alguns considerarem que o ato psicanalítico possui um tanto de expressão artística.3 Independentemente da natureza do vínculo que se possa reconhecer entre essas duas expressões humanas, não há como desconsiderar que psicanálise e arte possuem laços estreitos. Basta uma passada de olhos no índice da obra freudiana para perceber que Freud não se negou, na origem da elaboração de sua teoria, a mostrar de que modo a psicanálise se envolveu com os mais consagrados exemplos de arte clássica sem fazer feio. Muito pelo contrário, são textos freudianos que exalam o vigor da psicanálise no seu contato com a Arte. A partir de Freud, muitas considerações foram propostas entre psicanálise e arte e em inúmeras vezes a expressão artística, ou mesmo a biografia do próprio artista foram deitados no divã e tomados como objeto a ser interpretado. Ou seja, a psicanálise passou a ser aplicada ao objeto arte. Bem, é a partir daqui, do questionamento dessa sorte de psicanálise que está o ponto de partida de João Frayze. Tomemos suas palavras na Introdução do livro: (...) a Psicanálise que exercitamos, compatível com a Arte, não é aplicada, mas implicada, isto é, derivada das artes ou engastada nelas, pois não é uma forma a se aplicar à matéria exterior, não é um modelo que ajusta abstratamente o objeto artístico às suas exigências teórico-conceituais (p. 23). Ao parear os verbos aplicar e implicar,4 cuja sutil diferença ortográfica se opõe à extraordinária diferença de sentido, Frayze explicita de antemão o terreno sobre o qual estarão assentadas as considerações desse livro, lugar no qual se organiza seu pensamento psicanalítico. Ora, como é que se expressa um psicanalista implicado em seu objeto? Essa é uma pergunta com resposta peremptória: ele interroga. As perguntas do autor que estão distribuídas no decorrer das páginas desse livro são as setas indicativas do caminho de dentro, do âmago do envolvimento entre psicanálise e arte e que encaminham o leitor a encontrar suas próprias interrogações. “(...) pode a Psicanálise ser um exercício de Crítica”? (p. 27) é a questão que encontramos nas primeiras páginas do livro. E o autor conclui em seguida: “Esta é uma interrogação que, silenciosa, permanecerá aberta neste volume até o final do último capítulo” (p. 27). Além de perguntas como esta, de cunho estritamente psicanalítico, e, portanto, sem respostas, encontraremos as interrogações do autor como conhecedor de artes e que colocarão o leitor em contato com a sua larga experiência sobre a estética e o extenso campo das artes plásticas. Através dela o leitor será levado pela mão diretamente ao fascinante universo da criação artística com seus inúmeros mistérios a serem desvendados. À guisa de exemplo, podemos tomar o capítulo “Obra trágica: O segredo de Van Gogh”. Logo de início o autor esclarece a natureza das observações que nortearão suas palavras. Ele não adota explicações nem sobre a obra nem sobre a personalidade do pintor, recusando, portanto, o “pensamento de sobrevôo” criticado por Merleau-Ponty. A partir dessa postura definida, Frayze assinala que “a explicação do visível decreta sua morte” (p. 230). Em seguida reafirma sua proposta diante da obra de Van Gogh: “(...) gostaríamos de, sob certo ponto de vista – o que se forma no cruzamento de nossa experiência com a Psicanálise, com a História da Arte e com a Estética –, deixar surgir na obra de Van Gogh algumas sombras” (p. 230). Ao propor a renúncia às explicações de qualquer natureza, e a conseqüente permanência no campo das sombras, na obra do pintor, Frayze encaminha o leitor para o pensamento psicanalítico por excelência. O “deixar surgir” proposto pelo autor coloca em primeiro plano a essência da experiência psicanalítica, qual seja, a associação livre, que desperta pensamentos de natureza inconsciente, guia inconteste do exercício da psicanálise. É exatamente por esse motivo que, apesar dos inúmeros escritos a propósito da arte e da vida de Van Gogh, os leitores encontrarão, no capítulo a ele dedicado, uma abertura para inusitadas considerações. Será possível constatar, no decorrer da leitura que, o “deixar surgir” não despreza o amplo e sólido conhecimento do autor acerca dos temas abordados. Pelo contrário, esse substancial conhecimento é terra firme sobre a qual o leitor poderá caminhar, sem temor, por entre os meandros, as entrelinhas e silêncios sugeridos pelos textos que compõe cada capítulo. Enfim, Arte, dor é um livro-guia precioso e está a nossa disposição para entrarmos pela porta da frente no fascinante universo da arte conduzidos pela mão precisa de um psicanalista experiente.


1 Adélia Prado, poetisa, costuma dizer que o cotidiano é a própria condição da literatura. Morando na pequena Divinópolis, cidade com aproximadamente 200 mil habitantes, estão em sua prosa e poesia temas recorrentes da vida de província, a moça que cozinha, a missa, um certo cheiro de mato, vizinhos, gente de lá (Projeto releituras, Arnaldo Nogueira Junior, Blog Internet). 2 Entrevista realizada pela TV Cultura na década de 1990. 3 Fabio Herrmann, em Clínica psicanalítica: A arte da interpretação. São Paulo: Casa do Psicólogo (2007), é um dos psicanalistas que se dedicaram a mostrar a relação estreita entre psicanálise e arte. 4 Aplicar: justapor, sobrepor (alguma coisa) sobre (outra), opor. Implicar: envolver (alguém ou a si mesmo) em complicação, embaraçar, comprometer (se),envolver (se).